quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O MasterChef e nossas ilusões

Confesso que gostava de assistir ao MasterChef Brasil 2016, que acabou esta semana. Penso até que talvez tenha algo masoquista por trás disso, porque a edição do programa é feita para te deixar extremamente nervoso e ansioso. Na verdade, nem sei por que via, não curto cozinhar e acho esse tipo de competição desnecessária, só para inflar egos. Enfim, toda terça eu me animava para passar roupa vendo a disputa!

Logo gostei do Léo e comecei a torcer para ele. Qual foi minha surpresa quando um amigo revelou já ter trabalhado com ele e o pai. E a avaliação não foi nada positiva com relação ao caráter e à idoneidade da família na área dos negócios. Entretanto, isso não me fez deixar de gostar do rapaz. Até falei para o meu amigo – que com certeza não assistia ao programa –, que o Léo estava na final e eu, na torcida. Foi aí que ele disse não duvidar nada que o resultado tenha sido comprado, afinal, dinheiro para eles não era nenhum problema. Busquei uma fonte dentro da Band e quis saber se isso era possível. “Possível é, mas não acho que será feito. Pagar para participar da seleção de candidatos acontece com certeza!” foi a resposta. Mesmo trabalhando na área de comunicação, às vezes me acho muito ingênua.

Bom, a final foi na terça. Quase todos os ex-participantes, convidados para o último programa, torciam para a Bruna, enquanto 86% do público torcia para o Léo. Oitenta e seis por cento. Ele é realmente cativante... observando o perfil dele no Facebook – aquele criado para a competição, não o pessoal – há declarações de amor e exaltação à sua humildade e caráter durante o MasterChef. Depois do resultado (o Léo ganhou, para quem ainda não sabe), as pessoas começaram a comemorar criticando a segundo lugar e todos aqueles que queriam que ela ganhasse. O principal motivo, de acordo com o público, era a arrogância da Bruna.

Eu tentei observar tudo aquilo de longe, como um show midiático, sem me envolver. E então me questionei por que aqueles que conheciam o Léo na “vida real” não torciam por ele. O que nem todos estavam vendo?

Claro que o mundo não é dividido em pessoas boas e ruins, seria simples e injusto demais, mas quero questionar nossa capacidade de se iludir, de ver o raso, de defender enlouquecidamente algo ou alguém que a gente nem conhece direito e também atacar pedras. Julgamos as pessoas e criamos um mundo de ilusão como se fosse a verdade. E a mídia proporciona todo esse show. Estudiosos de física quântica dizem que esse mundo em que vivemos é uma ilusão. E o que a mídia faz é uma ilusão dentro da ilusão. É mais ou menos como no filme “A Origem”, de Christopher Nolan. O que é real?

Vamos vivendo totalmente manipulados por empresas de comunicação cujo desejo é apenas poder. Somos enganados facilmente e na maioria das vezes não nos damos conta. Acreditamos no que nos mostram, defendemos e criticamos pessoas que nunca vimos, brigamos por coisas tão fúteis que só servem para enriquecer alguém. Quando vamos acordar?

Gastamos com plásticas, produtos de beleza, equipamentos eletrônicos, móveis, carros e não conseguimos simplesmente analisar nossas vidas, ou, simplesmente, viver. Por isso há tanta insatisfação, dor e desânimo. Não sabemos por que, mas estamos errando o caminho. Criamos um mundinho cheio de julgamentos no qual nos dizem para sermos isso e fazemos aquilo. Somos teleguiados – nos últimos tempos com ajuda de celulares e computadores, não apenas da televisão.

Livros e filmes de “ficção científica” já mostraram muito isso. Eu tenho medo do futuro. Precisamos urgentemente de uma transformação interna. O quanto você vê por trás do que te mostram? O quanto você questiona o que te impõem? Com o que você se envolve? O que te move? O que é, de fato, importante para você?


sábado, 3 de outubro de 2015

Natureza, crianças e cachorros

Hoje me embrenhei no bairro Recanto Verde do Sol, lá para os lados de Cidade Tiradentes, São Matheus, Jd. Iguatemi: Zona Leste. Nome lindo, não é? O lugar, pobre de luxo, é rico em áreas verdes, cachorros e crianças. Você até coloca em lugar secundário o lixo espalhado, as casas de tábuas construídas à mão na beira das ruas, a falta de reboque nas construções...

O nome da rua nem aparece no Google, mesmo sendo asfaltada. O lotação me deixou na de baixo. Quando vi a subida inclinadíssima que eu teria que enfrentar, comecei a rir. Parecia que ia escalar uma parede! Até brinquei com um morador que estava na porta de casa: “Vocês devem ter uma batata da perna maravilhosa!”.

Fui ao Centro Espírita Paz e Harmonia Eurípedes Barsanulfo, que estava realizando uma festa para as crianças da comunidade. Uma das mães, de 28 anos, tem 9 filhos, ela ficou grávida aos 12. O marido não tem uma perna, mas ela mesma ri: “Imagine se tivesse aos duas...”. O mais novo, recém-nascido, tá bem gordinho e bem alimentado, só com leite do peito. Os filhos mais novos (porque ela tem uma de 18 anos...) estavam todos animados para escolher os brinquedos que levariam para casa. Falantes, contavam histórias de super-heróis e queriam encontrar entre os presentes doados carrinhos de controle remoto do Batman e do Homem Aranha. Um deles me disse que queria um Xbox. Eu ri porque achei engraçado um menino de seis anos numa realidade de tão poucos bens dizer certinho essa palavra e saber exatamente do que se trata. E então, percebendo minha surpresa, olhou para o outro e disse: “Ela nem sabe o que é isso!”. Aí que eu ri com muito gosto mesmo!

Essas crianças, com nomes de anjo: Samuel, Daniel, Gabriel... ou religiosos: Abraão, Esther...  todos irmãos, vestiam chinelos e barro nos pés. Um deles derrubou a Coca-cola e fez aquela lambança... levou um esporro feio da mãe.

Uma hora, peguei o recém-nascido, e todos os irmãos queriam pegá-lo também. E lá fui eu passando o bebê de mão em mão... eles mesmo diziam: “cuidado com a cabecinha”.

Outra menina, toda feliz, ia tirar uma foto. E a mãe pediu um sorriso. A criança mostrou os dentinhos, colocou o maxilar um pouco para frente e fez uma pose toda charmosa. A mãe logo gritou: “Assim não! Faz assim”. Isso aconteceu duas vezes na sequência, até ela baixar os olhos e ficar envergonha. Eu me agachei, olhei para ela e disse: “Faça do seu jeito, está linda!”. E ela fez o mesmo sorriso que a mãe não gostou... e a foto ficou ótima!

E tinham nomes muito interessantes: Bryan, Dylan, Kiara, Dafne, Hebe...

No percurso de ida e volta, reparei que há uma enorme quantidade de pet shops! Até uma de frente para a outra! Inclusive, entrou no coletivo um cara com uma gaiola e dois periquitos recém-adquiridos. Esse povo dá valor aos bichinhos!

Também vi muito comércio de frutas, legumes e verduras, em locais fechados, barracas e caçambas de caminhões. Ah! Encontrei várias hortas bem cuidadas! E que ar limpo e fresco, há muitas áreas protegidas por lá, com árvores enormes e muita vegetação.

Natureza, crianças e cachorros: o que mais você precisa para ser feliz? Um iphone? Pode até ser. Poder comprar o que a gente quer é bom demais, fora que tem sua utilidade. Mas, por favor, não se esqueça do que tem mais valor. E tem tanto valor que não dá nem para mensurar, muito menos comparar com qualquer bem material. Peça para uma mãe carinhosa dizer quanto vale seu filho. Quanto custa ver as crianças brincando com os cachorros num gramado verdinho?

Por que a gente abre mão de ter filhos, animais de estimação, plantas...? Abrimos mão do que não se pode mensurar de tão importante que é e que, ao mesmo tempo, é de graça. Claro que custa cuidar bem, mas o amor é gratuito. Precisamos, sim, de água, comida, roupa, casa, hospitais, trabalho, lazer... mas porque negar o amor, se ele é indiscutivelmente indispensável?

Que o Recanto Verde do Sol ilumine nossos corações...

 

sexta-feira, 10 de julho de 2015

O presente do presente


Eu planejei só o primeiro passo. O restante aconteceu.

O programado comigo mesma era ir ao Sesc Belenzinho e passar um bom tempo lá, vendo as pessoas na vida real. Sem telas. Sabia que veria crianças se divertindo. Férias. Adoro! Sentei-me no “camarote”, de frente para a mais incrível área de convivência que já conheci. Você que já foi lá sabe do que estou falando. O chão é de vidro transparente, dá para caminhar por cima olhando as pessoas nadando lá embaixo, na piscina aquecida. Eu adoro assistir às reações das pessoas a esse inusitado ambiente.

As crianças têm medo de pisar, mas se confortam e se encorajam em ir de mão dada com alguém, mesmo que seja outra criança. Chamo de segurança compartilhada. Mas, na verdade, não assegura nada se tudo aquilo desabar. A segurança está na nossa cabeça. Os passos curtos e incertos, a cabeça inclinada para baixo, olhando toda aquela água, mas sempre caminhando. Algumas choram de medo, mas continuam andando. Ninguém precisa insistir para que elas passem pelo vidro. Elas querem ir, querem testar. Em alguns minutos, depois que o medo dá adeus e vai pousar em novos ombros, as crianças começam a correr desafiadoras por cima do vidro ou se deitam no chão com o rosto virado para baixo, mirando os nadadores de um lado para outro nas raias lá embaixo.


Nem os adultos são indiferentes ao espaço. Alguns não se atrevem a pisar no vidro, caminham pelas beiradas. Tem gente que passa a vida com medo, andando pelas beiradas.

Noto um menininho oriental que fez amizade com diferentes crianças em diferentes momentos. Vi quando ele ajudou, não apenas uma vez, a menina que caiu no chão. Em um dos bancos, estavam seu pai e um casal que julguei serem os avós. Essa turma seguiu para outra atividade. E eu também.


Na lojinha do Sesc há CDs, DVDs, livros, canecas, lápis, bloquinhos, jogos da memória, guarda-chuvas coloridos... perguntei a mim mesma como poderíamos escolher um CD ou DVD para comprar sem ouvir antes. Foi quando vi uma máquina que permitia escutar os itens à venda e também conhecer mais sobre os livros disponíveis. Testei um CD de rock para crianças. Adorei.

Então segui para a exposição Imaterialidade. “A canção de amor, o brinquedo da infância e a fotografia (...) guardam sob (ou sobre) sua constituição as tessituras imateriais que apreendemos do vivido. Ao tomá-los como guias dos baús de nossas lembranças, podemos perceber que habitamos duas dimensões que se entrecruzam: de um lado, a constelação das sensações que nos vinculam aos acontecimento e, de outro, o universo de elementos concebidos como formas e meios de pensar, registrar ou reviver esses mesmos vínculos.” Foi o que escreveu Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo, no catálogo da exposição.

Isso, é na vertical mesmo

É um quadrado físico?

Você passaria direto correndo?



A imaterialidade, real ou não real?, o que é real? Nossa mente acredita no que vê e sente com todos os sentidos. A mostra usa sons, cores, formas, luzes e vento (sim, vento) para falar da ausência da matéria, que não significa não existir. É mais do que existir.

Aí deu fome. Subi ao terceiro andar, onde tem uma comedoria com móveis de madeira e uma área externa de encantar qualquer mortal. Sem querer, fui levada a esse local bem na hora do pôr do sol. Um céu rosa, amarelo, abóbora, azul e vermelho tomou comigo um chocolate quente grande e um pão de queijo. Questionei o fato de dizermos “o Sol está indo embora” se, na verdade, é a Terra que gira... Então fiquei olhando ela girar, nem tão lenta e nem tão rápida, modificando as cores e as formas a cada minuto, mostrando que mudamos a cada momento. Já cantava Lulu Santos: “tudo muda o tempo todo no mundo”.



Não fiz sobreposição de imagens. É apenas o que vi...

Tirei fotos e fui enviando para minha família via WhatsApp. Quando eu estava no banheiro, meu pai respondeu com uma música para ser ouvida enquanto vê as minhas fotos. Peguei meu fone, coloquei no último volume e voltei lá para a varanda, para juntar o ver com o ouvir. A música Get Here, com a Oleta Adams, combinou perfeitamente. Ouvi umas duas ou três vezes olhando o céu tão belo quanto mutável.


Em cada canto do Sesc que eu ia, via um novo ângulo para fotografar. E tudo isso foi me preenchendo com uma sensação de presença. Eu queria estar naquele lugar olhando aquilo, ouvindo aquilo, sentindo aquilo. Que vontade de respirar fundo.


Desci para ir embora, olhei para a piscina, com aqueles lindos azulejos azuis (como se “azulejos azuis” fosse pleonasmo), combinando com aquele céu, começando a ficar escuro. Ouvi uma música na Cafeteria. Era a passagem de som da galera que ia tocar às 21h30, pela Edição Norte e Nordeste do Guitarras Brasileiras. O show seria do Pepeu Gomes, Robertinho de Recife e Felipe Cordeiro, mas eu já estava cansada. O pouco que ouvi, sentada ao redor da fonte, perto das árvores cuidadosamente identificadas e iluminadas, foi incrível, principalmente por ser instrumental. Ao fundo, uma grande instalação em formato de ondas, com bolas dentro, fechadas por redes, convidava quem quisesse tentar passar as bolas de uma onda para outra, apenas usando as mãos. Quer coisa mais simples? E divertida?


Eu não sabia para onde olhava. O céu parecia estar arrumado para um evento de gala, as árvores carregavam elegantemente suas folhas, crianças e adultos dançavam automaticamente ao ouvir o som vindo da Cafeteria. Ao longe, duplas jogavam tênis, pessoas conversavam, meninos e meninas corriam, como se pudessem chegar mais rápido no futuro. Nem adiantava falar que o futuro não existe...

Quero guardar tudo isso aqui dentro e ficar lembrando. Mas que ironia. A beleza disso é que foi um momento presente bem vivido. Mas agora virou passado. Que outros bons presentes aconteçam. Só depende de mim.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Homens coloridos


Gosto de cores, gosto do sol, gosto da vida. Vida que vejo nua, do lado de fora das janelas, em cada pedra da calçada, em cada tijolo sobreposto e ladeado que forma milhares de corações. Domingo, frio e sol. Outono. Depois de aproveitar uma maravilhosa contação de história gratuita dentro da Casa de Cultura na Penha, atravessei a rua e parei para olhar a festa no Largo do Rosário. Junto com o vento, o maracatu voava dos tambores até os ouvidos, e as bandeirinhas coloridas saíam da tão conhecida igreja azul e branca e se fundiam lá no alto com cachos do ipê rosa, tocando de leve os raios de sol. Senti mais do que vi.

Resolvi conhecer a igreja de perto. A entrada ficava bem atrás do palco, onde uma galera animada apresentava os grupos das mais diversas comunidades, que traziam música, saias rodadas, alegria e muita história. Era a 14ª Festa do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França. Eu sabia que aquela igreja tinha sido construída por e para negros, porque eles não poderiam frequentar as mesmas que “seus senhores”, mas nunca tinha parado para sentir tudo isso...


Subi os degraus e li a placa logo na entrada: “Capela de Nossa Senhora do Rosário da Antiga Irmandade dos Homens Pretos da Freguesia de Penha de França – testemunha histórica da solidariedade no sofrimento e da esperança de redenção”. Foi fundada em 1802. O espaço era pequeno, vazio no meio, não sei se ali ficavam os bancos que estavam no meio da praça para a festa. Nas paredes dos dois lados, tecidos estampados de flores, com franjas de fitas coloridas. No fundo, Nossa Senhora de Aparecida ao centro. O lado direito estava vazio, acho que era o lugar da Nossa Senhora do Rosário, que estava ao ar livre, perto do palco e cercada de flores. No lado esquerdo estava São Benedito, filho de escravos.

Cada pedaço de ar que batia naquelas paredes levantava os fragmentos de uma época de correntes e chicotes, estapeando os rostos rosados daqueles que nunca vão saber o que é ser negro. Eu chorei. Mas nunca como eles, porque suas lágrimas escorriam para dentro. Quem dá o poder para alguém dizer que o outro não é gente? Que não merece viver junto? Que não é permitido partilhar as coisas do mundo? Por que quem ouviu isso acreditou? Por que quem disse isso foi respeitado e seguido? E o que mais me inquieta: por que se ouve isso até hoje?



“Senhor, não te peço que encurtes ou troques a minha cruz: ajuda-me a carregá-la.
Não te peço que alivie o meu caminho: vem, caminha comigo.
Não te peço que me troques a água em vinho: dai-me de beber o que for do teu agrado, porque só depois da noite escura é que brilha a luz do sol.
Se me deixas chorar, é porque me queres mais amadurecido na fé.
O caminho não é feito só de rosas, nem só de espinhos.
Se permitires que alguém me fira, é para que eu saiba amar e perdoar: só existe amor onde houver perdão.
Portanto, Senhor, não te peço que troques a minha cruz, nem a alivies. Somente me ajude a carregá-la.”

Estava pregada essa mensagem lá na parede. Na igreja de um povo que só sofria, além do que eu e qualquer pessoa da nova geração possa sentir. E o pedido era de força para continuar a lutar e a suportar tudo isso.

Vi as pessoas participando da festa, imaginei suas vidas, memórias, histórias de antepassados, o que cada célula carrega há anos. Vida em grãos de esperança. Identidade na cara, essência escondida, alma partilhada, a mesma luz com cascas coloridas. Estágios de amadurecimento, misturas complexas. O quanto temos ainda que aprender! Quantos mais mil anos, meu deus? Quantos mais mil anos!



sexta-feira, 20 de março de 2015

Presente


Metrô. O mais lotado que o universo já enfrentou em toda a sua existência.

Animais se espremem e alcançam o contato que tanto pedem quando estão sozinhos. Seios nas costas, bunda na barriga, cabelo na boca, carne na carne. País tropical. Troca de calor.

Não só de calor. Sinto hálitos, perfumes – vencidos ou não – e flatulências, claro. Tapo o nariz.

Gritos, risadas, súplicas e reclamações. Batucada no teto. Os cinco sentidos aguçados. Eu sinto gosto de gente. Quem deseja viver esse presente?

Gente sai, gente entra. Não desafoga a galera: o mundo inteiro mora além de Corinthians-Itaquera.

Dói o braço. Não dá para abaixar.

Dói a perna. Não dá para agachar.

Ai, esse rabo de cavalo na minha cara...

Não tem para onde fugir.

Aposto que esse japonês de olhos fechados e em pé aqui do lado está meditando.

Não consigo ler. Nem a finura do meu Kobo cabe entre mim e a outra quase mim que está na minha frente.

Reze, cante uma música, mas se deixou os fones de ouvido na bolsa, esqueça. Não há espaço para se movimentar.

Somos retângulos de Bis acomodados em uma caixa lacrada dentro de uma outra de papelão, empilhada junto de umas cem, dentro de um caminhão lotado. Mas somos bem menos gostosos.

Ai, esse rabo de cavalo na minha cara...

Lá fora, nos letreiros, passam todas as estações de todos os metrôs de todos os países de todos os planetas de todas as galáxias, mas não chega a minha.

Abrindo caminho entre o matagal do Parque dos Dinossauros, onde ninguém fala português, chego à porta. Quando ela se abre na minha estação, é como ver o pôr do sol de cima do Pão de Açúcar. Só sai um: obrigada, meu deus.

O cansaço é grande, não aguento andar. Mais de uma hora em pé e esmagada. O olha que nem era show do Paul McCartney... Sento em um dos bancos da própria estação.

Os trens passam... e eu penso que há milhares de pessoas em situações infinitamente piores do que a minha. Minha amiga perdeu o pai enquanto eu estava no metrô.

Mas também há milhares de pessoas estupendamente melhores. Meu pai estava deitado no sofá, com minha sobrinha de dez meses e dois gatos em volta enquanto eu estava na plataforma aguardando o estouro da boiada com a chegada do trem.

Respiro fundo. Fecho os olhos. Nossa, eu poderia dormir aqui sentada.

Penso nessas milhares de pessoas e no momento pelo qual passam, mas, na verdade, só preciso pensar em uma: na única que posso comandar e tem toda a autonomia para mudar qualquer coisa na minha vida e transformar a realidade.

Levanto e caminho para casa. Oba! Hoje é dia de pizza!

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Há duas décadas...



Eu versão 2013 me encontrei comigo versão 1993. Vinte anos nos separam. Olhei para aqueles cabelos emaranhados, presos num rabo de cavalo desleixado, e pensei em como não deveria ser importante cuidar deles, apesar do tempo livre que eu tinha. Tá certo que eu fazia banho de creme com touca térmica (coisa antiga...) de vez em quando. Mas só. Não era prioridade.

Olhei para aqueles óculos de armação oval, com os aros de plástico, comuns para adolescentes da época. Aquele rosto de menina, as espinhas (ainda hoje aparecem!). Não era popular, os meninos me viam como um deles, tanto que eu era a única que deixavam olhar as revista de mulher pelada que levavam para a escola (??).

Naquela época, eu era fã de futebol, ia à aula de Educação Física dos garotos da minha turma de manhã e me deixavam jogar com eles. Como café com leite, claro. Também gostava de criar palavras cruzadas sobre jogadores para que adivinhassem... eu adorava, eles me davam atenção.

Reparei, então – como se pudesse esquecer – que eu era magra demais, parecia um cabide. Minha mãe dizia que tudo ficava bonito em mim. Hoje, com alguns quilos a mais, e sempre aumentando, vejo que ela tinha razão. Sinto falta daquele corpinho esguio, que dava medo que saísse voando a qualquer vento. Muitas de minhas amigas eram assim, magrinhas, mas garanto que saudáveis.

Parecia que os braços e pernas longos cresceram todos de sopetão, mas de forma irregular. “Como ela espichou”, diziam os mais velhos. Eu dava um sorriso amarelo. O pé então... já calçava praticamente o mesmo que hoje. Eu era, como chamavam minhas irmãs, uma letra L. Fina e com pés enormes.

Enquanto eu olhava para aquela minha figura, lembrei-me de algo pelo qual fiquei marcada: os bailinhos que vivia dando em casa. Depois da aula, combinava com a turma e todo mundo subia a rua junto. Alguns iam depois, mas sempre iam. E não tinha celular para ligar. Às vezes, nem telefone fixo. A gente ia gritar no portão mesmo. A pé. Como era bom.

Nesses bailinhos improvisados, dançávamos ao som do LP da novela Perigosas Peruas, tinha as mais dançantes e as lentas. Aliás, os meninos ameaçavam ir embora da festa se eu não colocasse músicas lentas. Então eu ia lá na vitrola do meu pai e deixava rolar “Spending my time”, do Roxette. A gente não parava uma. Os meninos ficavam meio tímidos no começo, mas depois começavam a nos chamar para a pista, ou melhor, o quintal. Elas não poderiam recusar sem um bom motivo, senão ficariam com raiva e dariam uma gelada na pobrezinha. Em uma dessas festas eu me propus a dançar com todos os meninos. Os que não me chamavam, eu mesma fiz as honras! Bons tempos em que a gente não tinha muita malícia... ficadas? Só para os mais saidinhos, que eram bem poucos. Nessas festas, não me lembro de ninguém ficando com ninguém. Depois surgiram uns casais, mas nada muito exposto. O momento do ápice era a dança lenta mesmo, o máximo de intimidade que a gente tinha.

Além dos bailinhos, costumávamos sair para dar umas voltas e comer alguma coisa. Lembro-me quando pegamos um ônibus e fomos ao Habib´s, na Lapa. Aquilo era luxo. Chegando lá, descobrimos que não serviam refrigerante (??), apenas sucos, que eram mais caros. Nossa grana era curta, mas todo mundo pediu uma esfiha e um suco. Depois de um tempo, conferimos nossos bolsos e deu para pedir mais uma rodada. Duas esfihas? Tava bom demais. Aquela mesa comprida, cheia de amigos conversando coisas que já tinham sido tão conversadas na escola. Do que a gente falava? Não sei. Acho que da nossa vida, nosso mundo, não escancarado na internet. Não tínhamos mural virtual, apenas aqueles caderninhos de recordações. Guardo o meu até hoje, com recadinhos dos meus amigos.

Nas férias, eu ia à casa deles ficar conversando no portão. Minha mãe dizia que eu deveria colaborar mais com os afazeres domésticos, mas nós, suas filhas, nunca fomos muito prendadas.

Enquanto eu olhava para minha versão 1993, ela apenas sorria, como se fosse holográfica... não precisava dizer nada, eu ia me lembrando de tudo. Reparei nas roupas. O modelito básico da época era shorts de cotton e camiseta. Eu usava uma camiseta lilás combinada com um shorts azul marinho e tênis branco!

E as paixões? Uma de minhas primeiras paixões foi um japonês na terceira série. Eu acho que ele também gostava de mim. E só isso bastava. Eu dizia que era meu namorado, mas ele não sabia... engraçado que o segundo japonês que me interessou é hoje meu marido. Estava escrito nas estrelas.

Mas na escola eu sempre me interessava por algum colega, principalmente depois da quinta série. Cada ano era um, levava até uns esculachos de grudenta que era: nunca soube disfarçar. Mas depois, todos reconheciam que era uma boa amiga! Era o suficiente. Para um deles fiz até um livro, minha primeira obra literária. Contava nossa vida juntos, casamento, filhos, até a morte. Morremos juntos, claro, o máximo do romantismo. Devo ter me inspirado em livros como “Amor de perdição”, que o professor Waldir fazia a gente ler. Esse garoto eu até pedi em namoro, mas ele quis um tempo para pensar e recusou, alegando gostar de outra... que coragem a minha. Minha amiga fez a mesma coisa com o menino que gostava, e também ganhou um “não”. Antes de mim. Que doces problemas...

Também lembro que o máximo de tecnologia que havia era aquele relógio que trocava as pulseiras, tinha de várias cores. A gente ia à biblioteca copiar livros em folhas de papel almaço. Não era nem possível sonhar com um mundo com Facebook. Éramos aquilo. E só.

Na porta da escola, vendia gelinho, mas minha mãe não deixava comprar, dizia que era feito de água suja! Mas uma vez combinamos de comprar e colocamos no armário da classe dentro de um isopor que alguém levou! Comemos no recreio!

Quando eu olho para aquela menina magrinha, que sempre estava nas festas, que levava as fitas gravadas para tocar e que queria ser reparada eu penso que tive uma adolescência normal e feliz.

Tudo mudou tanto... mas graças à internet (e às eleições, que nos levam de volta para a escola onde estudamos), podemos rever nossos colegas e saber o que estão fazendo da vida. Vinte anos é tanto tempo. Perdi muito da graciosidade que tinha, se é que tinha alguma. É clichê, mas os problemas endurecem a gente. Apesar disso, consigo identificar características que não se perderam no tempo, ainda bem! Eu mantive meu senso de responsabilidade e justiça, respeito pelos amigos e um prazer enorme em estar com eles.

Minha versão 1993 não veio para me deixar saudosista, mas para me fazer lembrar que “se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi...”. É o que diria, cantando, a minha mãe.