segunda-feira, 22 de junho de 2015

Homens coloridos


Gosto de cores, gosto do sol, gosto da vida. Vida que vejo nua, do lado de fora das janelas, em cada pedra da calçada, em cada tijolo sobreposto e ladeado que forma milhares de corações. Domingo, frio e sol. Outono. Depois de aproveitar uma maravilhosa contação de história gratuita dentro da Casa de Cultura na Penha, atravessei a rua e parei para olhar a festa no Largo do Rosário. Junto com o vento, o maracatu voava dos tambores até os ouvidos, e as bandeirinhas coloridas saíam da tão conhecida igreja azul e branca e se fundiam lá no alto com cachos do ipê rosa, tocando de leve os raios de sol. Senti mais do que vi.

Resolvi conhecer a igreja de perto. A entrada ficava bem atrás do palco, onde uma galera animada apresentava os grupos das mais diversas comunidades, que traziam música, saias rodadas, alegria e muita história. Era a 14ª Festa do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França. Eu sabia que aquela igreja tinha sido construída por e para negros, porque eles não poderiam frequentar as mesmas que “seus senhores”, mas nunca tinha parado para sentir tudo isso...


Subi os degraus e li a placa logo na entrada: “Capela de Nossa Senhora do Rosário da Antiga Irmandade dos Homens Pretos da Freguesia de Penha de França – testemunha histórica da solidariedade no sofrimento e da esperança de redenção”. Foi fundada em 1802. O espaço era pequeno, vazio no meio, não sei se ali ficavam os bancos que estavam no meio da praça para a festa. Nas paredes dos dois lados, tecidos estampados de flores, com franjas de fitas coloridas. No fundo, Nossa Senhora de Aparecida ao centro. O lado direito estava vazio, acho que era o lugar da Nossa Senhora do Rosário, que estava ao ar livre, perto do palco e cercada de flores. No lado esquerdo estava São Benedito, filho de escravos.

Cada pedaço de ar que batia naquelas paredes levantava os fragmentos de uma época de correntes e chicotes, estapeando os rostos rosados daqueles que nunca vão saber o que é ser negro. Eu chorei. Mas nunca como eles, porque suas lágrimas escorriam para dentro. Quem dá o poder para alguém dizer que o outro não é gente? Que não merece viver junto? Que não é permitido partilhar as coisas do mundo? Por que quem ouviu isso acreditou? Por que quem disse isso foi respeitado e seguido? E o que mais me inquieta: por que se ouve isso até hoje?



“Senhor, não te peço que encurtes ou troques a minha cruz: ajuda-me a carregá-la.
Não te peço que alivie o meu caminho: vem, caminha comigo.
Não te peço que me troques a água em vinho: dai-me de beber o que for do teu agrado, porque só depois da noite escura é que brilha a luz do sol.
Se me deixas chorar, é porque me queres mais amadurecido na fé.
O caminho não é feito só de rosas, nem só de espinhos.
Se permitires que alguém me fira, é para que eu saiba amar e perdoar: só existe amor onde houver perdão.
Portanto, Senhor, não te peço que troques a minha cruz, nem a alivies. Somente me ajude a carregá-la.”

Estava pregada essa mensagem lá na parede. Na igreja de um povo que só sofria, além do que eu e qualquer pessoa da nova geração possa sentir. E o pedido era de força para continuar a lutar e a suportar tudo isso.

Vi as pessoas participando da festa, imaginei suas vidas, memórias, histórias de antepassados, o que cada célula carrega há anos. Vida em grãos de esperança. Identidade na cara, essência escondida, alma partilhada, a mesma luz com cascas coloridas. Estágios de amadurecimento, misturas complexas. O quanto temos ainda que aprender! Quantos mais mil anos, meu deus? Quantos mais mil anos!



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