Gosto de cores, gosto do sol, gosto da vida. Vida que vejo nua, do lado de fora das janelas, em cada pedra da calçada, em cada tijolo sobreposto e ladeado que forma milhares de corações. Domingo, frio e sol. Outono. Depois de aproveitar uma maravilhosa contação de história gratuita dentro da Casa de Cultura na Penha, atravessei a rua e parei para olhar a festa no Largo do Rosário. Junto com o vento, o maracatu voava dos tambores até os ouvidos, e as bandeirinhas coloridas saíam da tão conhecida igreja azul e branca e se fundiam lá no alto com cachos do ipê rosa, tocando de leve os raios de sol. Senti mais do que vi.
Resolvi conhecer a igreja de perto. A entrada ficava bem atrás do palco, onde uma galera animada apresentava os grupos das mais diversas comunidades, que traziam música, saias rodadas, alegria e muita história. Era a 14ª Festa do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França. Eu sabia que aquela igreja tinha sido construída por e para negros, porque eles não poderiam frequentar as mesmas que “seus senhores”, mas nunca tinha parado para sentir tudo isso...
Subi os degraus e li a placa logo na entrada: “Capela de Nossa Senhora do Rosário da Antiga Irmandade dos Homens Pretos da Freguesia de Penha de França – testemunha histórica da solidariedade no sofrimento e da esperança de redenção”. Foi fundada em 1802. O espaço era pequeno, vazio no meio, não sei se ali ficavam os bancos que estavam no meio da praça para a festa. Nas paredes dos dois lados, tecidos estampados de flores, com franjas de fitas coloridas. No fundo, Nossa Senhora de Aparecida ao centro. O lado direito estava vazio, acho que era o lugar da Nossa Senhora do Rosário, que estava ao ar livre, perto do palco e cercada de flores. No lado esquerdo estava São Benedito, filho de escravos.
Cada pedaço de ar que batia naquelas paredes levantava os fragmentos de uma época de correntes e chicotes, estapeando os rostos rosados daqueles que nunca vão saber o que é ser negro. Eu chorei. Mas nunca como eles, porque suas lágrimas escorriam para dentro. Quem dá o poder para alguém dizer que o outro não é gente? Que não merece viver junto? Que não é permitido partilhar as coisas do mundo? Por que quem ouviu isso acreditou? Por que quem disse isso foi respeitado e seguido? E o que mais me inquieta: por que se ouve isso até hoje?
“Senhor, não te peço que encurtes ou troques a minha cruz: ajuda-me a carregá-la.
Não te peço que alivie o meu caminho: vem, caminha comigo.
Não te peço que me troques a água em vinho: dai-me de beber o que for do teu agrado, porque só depois da noite escura é que brilha a luz do sol.
Se me deixas chorar, é porque me queres mais amadurecido na fé.
O caminho não é feito só de rosas, nem só de espinhos.
Se permitires que alguém me fira, é para que eu saiba amar e perdoar: só existe amor onde houver perdão.
Portanto, Senhor, não te peço que troques a minha cruz, nem a alivies. Somente me ajude a carregá-la.”
Vi as pessoas participando da festa, imaginei suas vidas, memórias, histórias de antepassados, o que cada célula carrega há anos. Vida em grãos de esperança. Identidade na cara, essência escondida, alma partilhada, a mesma luz com cascas coloridas. Estágios de amadurecimento, misturas complexas. O quanto temos ainda que aprender! Quantos mais mil anos, meu deus? Quantos mais mil anos!
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