sábado, 3 de outubro de 2015

Natureza, crianças e cachorros

Hoje me embrenhei no bairro Recanto Verde do Sol, lá para os lados de Cidade Tiradentes, São Matheus, Jd. Iguatemi: Zona Leste. Nome lindo, não é? O lugar, pobre de luxo, é rico em áreas verdes, cachorros e crianças. Você até coloca em lugar secundário o lixo espalhado, as casas de tábuas construídas à mão na beira das ruas, a falta de reboque nas construções...

O nome da rua nem aparece no Google, mesmo sendo asfaltada. O lotação me deixou na de baixo. Quando vi a subida inclinadíssima que eu teria que enfrentar, comecei a rir. Parecia que ia escalar uma parede! Até brinquei com um morador que estava na porta de casa: “Vocês devem ter uma batata da perna maravilhosa!”.

Fui ao Centro Espírita Paz e Harmonia Eurípedes Barsanulfo, que estava realizando uma festa para as crianças da comunidade. Uma das mães, de 28 anos, tem 9 filhos, ela ficou grávida aos 12. O marido não tem uma perna, mas ela mesma ri: “Imagine se tivesse aos duas...”. O mais novo, recém-nascido, tá bem gordinho e bem alimentado, só com leite do peito. Os filhos mais novos (porque ela tem uma de 18 anos...) estavam todos animados para escolher os brinquedos que levariam para casa. Falantes, contavam histórias de super-heróis e queriam encontrar entre os presentes doados carrinhos de controle remoto do Batman e do Homem Aranha. Um deles me disse que queria um Xbox. Eu ri porque achei engraçado um menino de seis anos numa realidade de tão poucos bens dizer certinho essa palavra e saber exatamente do que se trata. E então, percebendo minha surpresa, olhou para o outro e disse: “Ela nem sabe o que é isso!”. Aí que eu ri com muito gosto mesmo!

Essas crianças, com nomes de anjo: Samuel, Daniel, Gabriel... ou religiosos: Abraão, Esther...  todos irmãos, vestiam chinelos e barro nos pés. Um deles derrubou a Coca-cola e fez aquela lambança... levou um esporro feio da mãe.

Uma hora, peguei o recém-nascido, e todos os irmãos queriam pegá-lo também. E lá fui eu passando o bebê de mão em mão... eles mesmo diziam: “cuidado com a cabecinha”.

Outra menina, toda feliz, ia tirar uma foto. E a mãe pediu um sorriso. A criança mostrou os dentinhos, colocou o maxilar um pouco para frente e fez uma pose toda charmosa. A mãe logo gritou: “Assim não! Faz assim”. Isso aconteceu duas vezes na sequência, até ela baixar os olhos e ficar envergonha. Eu me agachei, olhei para ela e disse: “Faça do seu jeito, está linda!”. E ela fez o mesmo sorriso que a mãe não gostou... e a foto ficou ótima!

E tinham nomes muito interessantes: Bryan, Dylan, Kiara, Dafne, Hebe...

No percurso de ida e volta, reparei que há uma enorme quantidade de pet shops! Até uma de frente para a outra! Inclusive, entrou no coletivo um cara com uma gaiola e dois periquitos recém-adquiridos. Esse povo dá valor aos bichinhos!

Também vi muito comércio de frutas, legumes e verduras, em locais fechados, barracas e caçambas de caminhões. Ah! Encontrei várias hortas bem cuidadas! E que ar limpo e fresco, há muitas áreas protegidas por lá, com árvores enormes e muita vegetação.

Natureza, crianças e cachorros: o que mais você precisa para ser feliz? Um iphone? Pode até ser. Poder comprar o que a gente quer é bom demais, fora que tem sua utilidade. Mas, por favor, não se esqueça do que tem mais valor. E tem tanto valor que não dá nem para mensurar, muito menos comparar com qualquer bem material. Peça para uma mãe carinhosa dizer quanto vale seu filho. Quanto custa ver as crianças brincando com os cachorros num gramado verdinho?

Por que a gente abre mão de ter filhos, animais de estimação, plantas...? Abrimos mão do que não se pode mensurar de tão importante que é e que, ao mesmo tempo, é de graça. Claro que custa cuidar bem, mas o amor é gratuito. Precisamos, sim, de água, comida, roupa, casa, hospitais, trabalho, lazer... mas porque negar o amor, se ele é indiscutivelmente indispensável?

Que o Recanto Verde do Sol ilumine nossos corações...

 

sexta-feira, 10 de julho de 2015

O presente do presente


Eu planejei só o primeiro passo. O restante aconteceu.

O programado comigo mesma era ir ao Sesc Belenzinho e passar um bom tempo lá, vendo as pessoas na vida real. Sem telas. Sabia que veria crianças se divertindo. Férias. Adoro! Sentei-me no “camarote”, de frente para a mais incrível área de convivência que já conheci. Você que já foi lá sabe do que estou falando. O chão é de vidro transparente, dá para caminhar por cima olhando as pessoas nadando lá embaixo, na piscina aquecida. Eu adoro assistir às reações das pessoas a esse inusitado ambiente.

As crianças têm medo de pisar, mas se confortam e se encorajam em ir de mão dada com alguém, mesmo que seja outra criança. Chamo de segurança compartilhada. Mas, na verdade, não assegura nada se tudo aquilo desabar. A segurança está na nossa cabeça. Os passos curtos e incertos, a cabeça inclinada para baixo, olhando toda aquela água, mas sempre caminhando. Algumas choram de medo, mas continuam andando. Ninguém precisa insistir para que elas passem pelo vidro. Elas querem ir, querem testar. Em alguns minutos, depois que o medo dá adeus e vai pousar em novos ombros, as crianças começam a correr desafiadoras por cima do vidro ou se deitam no chão com o rosto virado para baixo, mirando os nadadores de um lado para outro nas raias lá embaixo.


Nem os adultos são indiferentes ao espaço. Alguns não se atrevem a pisar no vidro, caminham pelas beiradas. Tem gente que passa a vida com medo, andando pelas beiradas.

Noto um menininho oriental que fez amizade com diferentes crianças em diferentes momentos. Vi quando ele ajudou, não apenas uma vez, a menina que caiu no chão. Em um dos bancos, estavam seu pai e um casal que julguei serem os avós. Essa turma seguiu para outra atividade. E eu também.


Na lojinha do Sesc há CDs, DVDs, livros, canecas, lápis, bloquinhos, jogos da memória, guarda-chuvas coloridos... perguntei a mim mesma como poderíamos escolher um CD ou DVD para comprar sem ouvir antes. Foi quando vi uma máquina que permitia escutar os itens à venda e também conhecer mais sobre os livros disponíveis. Testei um CD de rock para crianças. Adorei.

Então segui para a exposição Imaterialidade. “A canção de amor, o brinquedo da infância e a fotografia (...) guardam sob (ou sobre) sua constituição as tessituras imateriais que apreendemos do vivido. Ao tomá-los como guias dos baús de nossas lembranças, podemos perceber que habitamos duas dimensões que se entrecruzam: de um lado, a constelação das sensações que nos vinculam aos acontecimento e, de outro, o universo de elementos concebidos como formas e meios de pensar, registrar ou reviver esses mesmos vínculos.” Foi o que escreveu Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo, no catálogo da exposição.

Isso, é na vertical mesmo

É um quadrado físico?

Você passaria direto correndo?



A imaterialidade, real ou não real?, o que é real? Nossa mente acredita no que vê e sente com todos os sentidos. A mostra usa sons, cores, formas, luzes e vento (sim, vento) para falar da ausência da matéria, que não significa não existir. É mais do que existir.

Aí deu fome. Subi ao terceiro andar, onde tem uma comedoria com móveis de madeira e uma área externa de encantar qualquer mortal. Sem querer, fui levada a esse local bem na hora do pôr do sol. Um céu rosa, amarelo, abóbora, azul e vermelho tomou comigo um chocolate quente grande e um pão de queijo. Questionei o fato de dizermos “o Sol está indo embora” se, na verdade, é a Terra que gira... Então fiquei olhando ela girar, nem tão lenta e nem tão rápida, modificando as cores e as formas a cada minuto, mostrando que mudamos a cada momento. Já cantava Lulu Santos: “tudo muda o tempo todo no mundo”.



Não fiz sobreposição de imagens. É apenas o que vi...

Tirei fotos e fui enviando para minha família via WhatsApp. Quando eu estava no banheiro, meu pai respondeu com uma música para ser ouvida enquanto vê as minhas fotos. Peguei meu fone, coloquei no último volume e voltei lá para a varanda, para juntar o ver com o ouvir. A música Get Here, com a Oleta Adams, combinou perfeitamente. Ouvi umas duas ou três vezes olhando o céu tão belo quanto mutável.


Em cada canto do Sesc que eu ia, via um novo ângulo para fotografar. E tudo isso foi me preenchendo com uma sensação de presença. Eu queria estar naquele lugar olhando aquilo, ouvindo aquilo, sentindo aquilo. Que vontade de respirar fundo.


Desci para ir embora, olhei para a piscina, com aqueles lindos azulejos azuis (como se “azulejos azuis” fosse pleonasmo), combinando com aquele céu, começando a ficar escuro. Ouvi uma música na Cafeteria. Era a passagem de som da galera que ia tocar às 21h30, pela Edição Norte e Nordeste do Guitarras Brasileiras. O show seria do Pepeu Gomes, Robertinho de Recife e Felipe Cordeiro, mas eu já estava cansada. O pouco que ouvi, sentada ao redor da fonte, perto das árvores cuidadosamente identificadas e iluminadas, foi incrível, principalmente por ser instrumental. Ao fundo, uma grande instalação em formato de ondas, com bolas dentro, fechadas por redes, convidava quem quisesse tentar passar as bolas de uma onda para outra, apenas usando as mãos. Quer coisa mais simples? E divertida?


Eu não sabia para onde olhava. O céu parecia estar arrumado para um evento de gala, as árvores carregavam elegantemente suas folhas, crianças e adultos dançavam automaticamente ao ouvir o som vindo da Cafeteria. Ao longe, duplas jogavam tênis, pessoas conversavam, meninos e meninas corriam, como se pudessem chegar mais rápido no futuro. Nem adiantava falar que o futuro não existe...

Quero guardar tudo isso aqui dentro e ficar lembrando. Mas que ironia. A beleza disso é que foi um momento presente bem vivido. Mas agora virou passado. Que outros bons presentes aconteçam. Só depende de mim.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Homens coloridos


Gosto de cores, gosto do sol, gosto da vida. Vida que vejo nua, do lado de fora das janelas, em cada pedra da calçada, em cada tijolo sobreposto e ladeado que forma milhares de corações. Domingo, frio e sol. Outono. Depois de aproveitar uma maravilhosa contação de história gratuita dentro da Casa de Cultura na Penha, atravessei a rua e parei para olhar a festa no Largo do Rosário. Junto com o vento, o maracatu voava dos tambores até os ouvidos, e as bandeirinhas coloridas saíam da tão conhecida igreja azul e branca e se fundiam lá no alto com cachos do ipê rosa, tocando de leve os raios de sol. Senti mais do que vi.

Resolvi conhecer a igreja de perto. A entrada ficava bem atrás do palco, onde uma galera animada apresentava os grupos das mais diversas comunidades, que traziam música, saias rodadas, alegria e muita história. Era a 14ª Festa do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França. Eu sabia que aquela igreja tinha sido construída por e para negros, porque eles não poderiam frequentar as mesmas que “seus senhores”, mas nunca tinha parado para sentir tudo isso...


Subi os degraus e li a placa logo na entrada: “Capela de Nossa Senhora do Rosário da Antiga Irmandade dos Homens Pretos da Freguesia de Penha de França – testemunha histórica da solidariedade no sofrimento e da esperança de redenção”. Foi fundada em 1802. O espaço era pequeno, vazio no meio, não sei se ali ficavam os bancos que estavam no meio da praça para a festa. Nas paredes dos dois lados, tecidos estampados de flores, com franjas de fitas coloridas. No fundo, Nossa Senhora de Aparecida ao centro. O lado direito estava vazio, acho que era o lugar da Nossa Senhora do Rosário, que estava ao ar livre, perto do palco e cercada de flores. No lado esquerdo estava São Benedito, filho de escravos.

Cada pedaço de ar que batia naquelas paredes levantava os fragmentos de uma época de correntes e chicotes, estapeando os rostos rosados daqueles que nunca vão saber o que é ser negro. Eu chorei. Mas nunca como eles, porque suas lágrimas escorriam para dentro. Quem dá o poder para alguém dizer que o outro não é gente? Que não merece viver junto? Que não é permitido partilhar as coisas do mundo? Por que quem ouviu isso acreditou? Por que quem disse isso foi respeitado e seguido? E o que mais me inquieta: por que se ouve isso até hoje?



“Senhor, não te peço que encurtes ou troques a minha cruz: ajuda-me a carregá-la.
Não te peço que alivie o meu caminho: vem, caminha comigo.
Não te peço que me troques a água em vinho: dai-me de beber o que for do teu agrado, porque só depois da noite escura é que brilha a luz do sol.
Se me deixas chorar, é porque me queres mais amadurecido na fé.
O caminho não é feito só de rosas, nem só de espinhos.
Se permitires que alguém me fira, é para que eu saiba amar e perdoar: só existe amor onde houver perdão.
Portanto, Senhor, não te peço que troques a minha cruz, nem a alivies. Somente me ajude a carregá-la.”

Estava pregada essa mensagem lá na parede. Na igreja de um povo que só sofria, além do que eu e qualquer pessoa da nova geração possa sentir. E o pedido era de força para continuar a lutar e a suportar tudo isso.

Vi as pessoas participando da festa, imaginei suas vidas, memórias, histórias de antepassados, o que cada célula carrega há anos. Vida em grãos de esperança. Identidade na cara, essência escondida, alma partilhada, a mesma luz com cascas coloridas. Estágios de amadurecimento, misturas complexas. O quanto temos ainda que aprender! Quantos mais mil anos, meu deus? Quantos mais mil anos!



sexta-feira, 20 de março de 2015

Presente


Metrô. O mais lotado que o universo já enfrentou em toda a sua existência.

Animais se espremem e alcançam o contato que tanto pedem quando estão sozinhos. Seios nas costas, bunda na barriga, cabelo na boca, carne na carne. País tropical. Troca de calor.

Não só de calor. Sinto hálitos, perfumes – vencidos ou não – e flatulências, claro. Tapo o nariz.

Gritos, risadas, súplicas e reclamações. Batucada no teto. Os cinco sentidos aguçados. Eu sinto gosto de gente. Quem deseja viver esse presente?

Gente sai, gente entra. Não desafoga a galera: o mundo inteiro mora além de Corinthians-Itaquera.

Dói o braço. Não dá para abaixar.

Dói a perna. Não dá para agachar.

Ai, esse rabo de cavalo na minha cara...

Não tem para onde fugir.

Aposto que esse japonês de olhos fechados e em pé aqui do lado está meditando.

Não consigo ler. Nem a finura do meu Kobo cabe entre mim e a outra quase mim que está na minha frente.

Reze, cante uma música, mas se deixou os fones de ouvido na bolsa, esqueça. Não há espaço para se movimentar.

Somos retângulos de Bis acomodados em uma caixa lacrada dentro de uma outra de papelão, empilhada junto de umas cem, dentro de um caminhão lotado. Mas somos bem menos gostosos.

Ai, esse rabo de cavalo na minha cara...

Lá fora, nos letreiros, passam todas as estações de todos os metrôs de todos os países de todos os planetas de todas as galáxias, mas não chega a minha.

Abrindo caminho entre o matagal do Parque dos Dinossauros, onde ninguém fala português, chego à porta. Quando ela se abre na minha estação, é como ver o pôr do sol de cima do Pão de Açúcar. Só sai um: obrigada, meu deus.

O cansaço é grande, não aguento andar. Mais de uma hora em pé e esmagada. O olha que nem era show do Paul McCartney... Sento em um dos bancos da própria estação.

Os trens passam... e eu penso que há milhares de pessoas em situações infinitamente piores do que a minha. Minha amiga perdeu o pai enquanto eu estava no metrô.

Mas também há milhares de pessoas estupendamente melhores. Meu pai estava deitado no sofá, com minha sobrinha de dez meses e dois gatos em volta enquanto eu estava na plataforma aguardando o estouro da boiada com a chegada do trem.

Respiro fundo. Fecho os olhos. Nossa, eu poderia dormir aqui sentada.

Penso nessas milhares de pessoas e no momento pelo qual passam, mas, na verdade, só preciso pensar em uma: na única que posso comandar e tem toda a autonomia para mudar qualquer coisa na minha vida e transformar a realidade.

Levanto e caminho para casa. Oba! Hoje é dia de pizza!